O
Tour da baronesa causou inquietações e críticas em alguns espaços das redes virtuais.
O Tour convida a população a pagar ingressos para assistir a apresentação de um roteiro histórico sob a condução de uma guia que interpreta uma personalidade histórica da aristocracia cafeeira, uma baronesa.
Portanto, tudo na divulgação leva a entender que a história da cidade será apresentada por um corpo, uma voz e modo de ser de uma classe social vinculada à aristocracia cafeeira.
Uma classe que teve seus privilégios extraídos da exploração do trabalho de milhares de negros escravizados e imigrantes europeus pobres.
À tal figura, que simboliza o poder econômico e cultural de uma classe, é dado o lugar de narradora da história da cidade na semana de celebração de seu aniversário.
Nada novo nesse roteiro, os detentores do poder econômico em Campinas há muitos séculos têm feito com grande eficiência suas celebrações. No traçado urbano, barões e baronesas, têm demarcado os espaços públicos da cidade com os nomes dos seus, garantindo a hegemonia cultural nas placas de ruas centrais, nos rostos expostos nos museus e nas maioria das publicações que celebram a história das cidades paulistas
O tour, portanto, é mais um evento cultural que tem caráter ideológico colonizado e colonizador, ao produzir e reproduzir um explícito discurso político que celebra uma classe social opressora e, mais uma vez, naturaliza mecanismos de poder que definem quem tem lugar e livre circulação nos espaços públicos e privados.
É mais uma manifestação das estruturas de poder que legitimam e perpetuam uma forma de organizar a vida cotidiana na cidade sob a lógica da segregação. Segregação dos corpos negros, pobres e periféricos, ou seja, todes que não se enquadram no padrão estético, politico, étnico, patriarcal e econômico, instituído pelas formas capitalistas de produção e periodicamente reafirmado pela celebração da propalada “modernidade do baronato campineiro”.
Vale ressaltar que não é a trabalhadora, que realiza a tarefa de guiar o tour, a responsável pelo viés ideológico do evento. Esse tipo de ação de turismo cultural tem origem nas relações mercantis que organizam a base material da atividade cultural, não só em Campinas.
É nesse ponto que devemos colocar nossas observações: as formas de organizar as relações sociais de produção, de financiamento, de participação e de controle social dos mecanismos de criação e circulação de arte/conhecimento/valores=vida.
Que relações existem entre este tour e o cercamento do Bairro Terras do Barão?
Muitas são as necessárias observações sobre as conexões entre esses dois eventos. Destaco algumas.
Em primeiro lugar, nada mais naturalizado como lógico e mesmo necessário, na cidade cuja história é celebrada e apresentada por uma baronesa branca, que no Bairro Terras do Barão seja instalada uma cerca e uma organização espacial segregadora dos corpos desviantes de um determinado padrão instituído como produtivo e confiável.
Segundo, é que trata-se de um bairro em que o padrão econômico é alto, onde vivem famílias em condições economicamente totalmente acima da média regional, mas está longe de ser local de moradia dos grandes senhores do capital. Portanto, se ilude quem lá mora e julga estar na mesma posição social que o barão que deu nome ao bairro ou a baronesa que inspira o tour. Importantíssimo destacar que não há consenso na comunidade local, entre os moradores e usuários do bairro, pela opção do cercamento e os consequentes constrangimentos e segregações a uma parcela da comunidade e visitantes.
O que se pode observar é que a difusão e celebração das lógicas culturais do baronato impelem à fragmentação e impedem a construção de perspectivas culturais afetivas e agregadoras. Assim, também, se contrapõe à organização de formas solidárias de sustentação material/econômica das atividades culturais, ou seja, as não pautadas unicamente pelas regras do lucro mercantil.
Terceiro, o tour e a cerca são práticas de uma mesma cadeia de relações sociais antidemocráticas, classistas, racistas e patriarcais. São resultantes de formas de organizar a vida, portanto a cultura, focadas no desmonte de espaços e serviços culturais de caráter público, sem finas lucrativos, sem exploração do trabalho e abertos à participação popular.
Explico.
Há na aŕea de museus da esfera pública municipal trabalhos de grande competência e acúmulo em pesquisas e práticas educativas na organização de tours, que apresentam a história da cidade em toda sua diversidade e complexidade. São trabalhos realizados por servidores públicos comprometidos com uma abordagem científica crítica da memória social. O que tem faltado é vontade política de valorizar e ampliar esses trabalhos. Melhor dizendo, o que tem sobrado é vontade política de destruí-los.
No tocante a cerca, um dos focos do cercamento é também um Centro Cultural, um local onde trabalhadores da cultura, servidores públicos e ativistas de coletivos artísticos, organizam atividades de reflexão e desconstrução das artes colonizadoras.
Ambos exemplos são práticas culturais não mercantis de produção e circulação de conhecimentos artísticos e científicos, portanto, que desnaturalizam processos referenciadores da mercantilização da vida tão caros aos que hoje ajudam a manter as relações sociais que continuam a extrair do trabalho de milhares a riqueza que sustenta e beneficia a classe que se perpetua no poder há séculos.
Em resumo, o tour e a cerca evidenciam as disputas pelas condições concretas materiais que definem quem tem direito e o acesso livre à cidade como um bem cultural coletivo.
Da terra à estética, das ruas às redes, dos territórios aos conhecimentos, o centro da disputa está na construção de poder social amplo, diverso e verdadeiramente participativo nos processos de decisão do que é e para quem é a cidade como bem cultural coletivo.